100 dias: 100 vistas

Relatos anacrônicos de um isolamento auto-imposto.

Hely Branco
7 min readJun 24, 2020

Faz 100 dias que começou, ao menos por aqui. Os efeitos de se passar esse tempo quase que num só ambiente são um tanto peculiares. A distinção entre os dias começa a se perder; as semanas perdem suas identidades, e fundem-se umas as outras. Quase como num loop, sinto viver num eterno domingo, permeado por ecos de uma normalidade há muito perdida e que, hoje, parece um sonho distante.

Na realidade próxima, tenho todas as minhas necessidades básicas perfeitamente atendidas: vivo num apartamento que, embora pequeno, é perfeitamente confortável, tenho ampla variedade de fontes de entretenimento e lazer, tenho um animal gentil e dócil para me fazer companhia, e tenho poder aquisitivo o suficiente para receber todo o resto na porta. No mundo exterior, a situação não poderia ser mais diferente. Nas imediações urbanas, uma cacofonia de marteladas, batidas e outros sons comuns em construções, todos gerados pelo colosso de cimento e aço sendo erguido a poucos metros daqui, me lembra da permanente mutabilidade dos grandes centros urbanos. Mais ao longe, ouço o constante tráfego de veículos dos mais variados tipos e tamanhos, e vejo uns raros pedestres que insistem em arriscar as suas e as nossas vidas em prol da falsa ideia de liberdade propagada pela corja de canalhas no Planalto Central. No fundo, conforme reconstruo a partir do mundo virtual, testemunho o desenrolar de um emaranhado de crises de todos os tipos, que se somam umas as outras e se transformam em uma montanha de caos em perpétuo crescimento. Aqui e ali, uns poucos buracos na malha de desastres me permitem olhar mais além, reacendendo minhas esperanças com os vislumbres de normalidade que aos poucos surgem no exterior e reiterando meus receios com a enorme distancia física e temporal que nos separa.

Nesses 100 longos dias de cárcere voluntário, fui condicionado a prestar mais atenção nos meus arredores. São nos detalhes que percebemos os verdadeiros efeitos da passagem do tempo, e como mesmo as maiores mudanças são fruto de processos graduais executados com paciência. Uma das várias formas que achei de registrar essa reflexão foi através de fotografias. Num dado dia, decidi despretensiosamente registrar a paisagem vista à janela, com a qual nunca tive tempo de me habituar. Repeti o feito uma ou duas vezes, até criar gosto, e o feito passar de fortuito para habitual. O procedimento sempre foi simples: em algum ponto do dia, tirei uma foto mais ou menos da mesma posição, retratando mais ou menos os mesmos elementos, mais ou menos do mesmo ângulo. Sem regras, sem planejamento. Não sei o que pensar do resultado, ou se darei continuidade a esse foto-diário acidental, porém compartilho aqui os resultados dessa empreita. Me pergunto quantas mudanças mais verei nessa cena antes que deixe de ser a única paisagem que posso admirar.

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